segunda-feira, 10 de março de 2008

Pousal

O Pousal é um “Lar para Deficientes e para Idosos”, localizado na Malveira, concelho de Mafra.

Desde 15 de Agosto de 1964 que lá coabitam as doenças genéticas mais terríveis com as deficiências mais e menos profundas. Da esclerose múltipla a síndromas com nomes impronunciáveis. E coabitam as idades todas, as crianças e os velhos, os que vivem numa região crepuscular onde anda desaparecida a face de Deus, onde parece desumano aquilo que não deixa de ser profundamente humano.

"Num lar de deficientes profundos ouvem-se muitos gritos, choro, objectos arrastados, sussurros, gemidos, grunhidos, não se ouve o riso. A gargalhada do Vítor é silenciosa, aprendeu a rir com os olhos. A doença degenerativa que lhe aprisionou o corpo e lhe paralisou todos os músculos excepto aquele no pescoço com que ele acciona o computador que a PT lhe ofereceu, com o sistema especial The Grid (parecido, creio, com o do físico Stephen Hawking), não lhe tocou na cabeça e vingou-se em tudo o resto. O cérebro lá está, activo, vigilante, inteligente, emotivo, o corpo é que foi deixando de obedecer. De modo que ele e a Fredy comunicam pelo velho sistema por ela inventado, filas de letras do alfabeto coladas no tabuleiro da cadeira. Ela diz, com a sua voz entaramelada (a deficiência dela, embora a paralise, não lhe retirou a fala nem o uso dos braços e das mãos), um, e vai soletrando as letras da fila número um, A, B, C, D, até o Vítor, com um sinal imperceptível dos olhos e um ruído da laringe (o Vítor não pode falar), assinalar a letra. E assim, lentamente, pacientemente, constroem um diálogo. Demora tempo, tudo demora tempo, e a Fredy recomeça quando não consegue identificar a palavra. Para abreviar, completamos a frase, e se não acertamos, voltamos atrás, caminhando sobre os nossos passos naquele discurso a conta-gotas. As frases do Vítor são sempre acertadas e cheias de humor.A televisão faz-lhe companhia e a RTP2 é a sua favorita. Adorou o «Six Feet Under», eu aviso-o (ele ouve bem) que vem aí o «Curb Your Enthusiasm», do Larry David, o homem que inventou a série «Seinfeld». Esquecemo-nos como a televisão pode ser a única companhia, e a boa companhia, embora no caso dele a companhia seja a Fredy e as pessoas do Lar do Pousal, gente heróica que atravessa o inferno do sofrimento humano. Freiras, terapeutas, professoras, empregadas, juntos fazem daquela casa sustentada pela Santa Casa da Misericórdia um verdadeiro lar."

" Tudo o que aborrece na vida de todos os dias não constitui para os deficientes profundos um problema, ali não há a vida de todos os dias, há a vida de um dia de cada vez."

"A verdade é que uma visita ao Pousal, na Malveira, nos deixa diferentes por dentro."

Clara Ferreira Alves, Expresso, 23-12-2005



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